sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Dia 04

Para acompanhar melhor esta série recomendo a leitura do Prólogo.

Minha tática de acordar sem pensar, dando um pulo da cama, estava dando certo por enquanto. Eu levantava com o gongo às 4h e pegava a lanterninha pra catar minha necessaire e as roupas até que todas as colegas estivessem de pé e a luz acesa. Eu me aprontava mais lentamente, tinha que me adiantar, achava agradável fazer uma coisa de cada vez. Mal sabia que começava meu dia de cão, e que não seria tão "fácil" assim levantar nos próximos dias.

Vipassana?

Chegava o dia de recebermos as instruções para iniciar a prática de Vipassana. Sim, pois durante os três dias anteriores praticávamos Anapana, que é simples observação da respiração, focando a atenção em uma determinada área em volta do nariz, depois pratica-se reduzindo esta área até o momento de se observar um pequeno ponto (acima do lábio superior). Estes dias são importantes para aquietar (ao menos um pouco) a mente, aguçando os sentidos. O fato de o ponto de observação ser pequeno ajuda a "afiar" a mente.

Em Vipassana vamos adiante e começamos a observar as sensações no corpo inteiro, de forma ordenada, não nos prendendo a nenhuma sensação, "escaneando" mesmo cada parte do corpo. É neste momento que aprofundamos os conceitos de impermanência e a equanimidade: não devemos ter aversão às sensações ruins, ao mesmo tempo que não devemos ter apego às sensações boas. As sensações podem ser diversas: formigamento, pressão, frio, calor, coceira, dor... e quanto menos definirmos o que é cada sensação melhor.

Achei legal trabalhar com as sensações do corpo pois de alguma forma eu já fazia isso. Não da forma "organizada" que a técnica propõe, mas justamente da forma que ela diz para você não fazer :) Explico: sou observadora, observo tudo, sou capaz de ficar horas olhando pra uma textura e fazendo combinações entre as partes pra formar desenhos, me chamem de autista. Como sempre gostei de observar todo tipo de coisa também costumava observar as sensações no corpo aleatoriamente. Uma pulsação estranha, um formigamento, na verdade todo tipo de sensação estranha, observava curiosa e incansavelmente até que desaparecesse. Mal sabia eu que havia um jeito "profissa" de fazer isso. Ai, ai, se eu soubesse antes...

Há algo de estranho...

E de repente, antes do início de um período de meditação me mudaram de lugar na sala aonde meditávamos todos, fui colocada uma fileira para trás. Remanejaram mais algumas pessoas também. Em uma breve retrospectivas e observação comecei a associar este deslocamento ao meu comportamento (bicho inquieto) e pensava: será que me chutaram pra trás porque me mexo muito? Nhunf! Tentei desencanar do assunto mas de vez em quando ele voltava: como se não tivesse mais milhões de pensamentos rodopiando pra me distrair da técnica eu ainda arrumava tempo pra ficar magoada, credo!

Fora esses zilhões de pensamentos passando na minha mente que eu tinha que driblar pra focar na prática, eu estava me saindo razoavelmente bem com a rotina e as 10 horas de meditação. Os pensamentos deixaram de me incomodar quando compreendi e segui a orientação-mor do Goenka, o famoso "start again". Em resumo, diz que os pensamentos irão surgir, inevitavelmente, e você não deve gerar frustração ou qualquer tipo de emoção negativa por estar querendo se concentrar na técnica e de repente começar a pensar num imenso sundae de chocolate. Aceite o fato de que a sua mente se distraiu, sorria e... comece de novo! Assim, do começo mesmo, sem problemas. E eu fazia isso. Pelas poucas palavras que a professora trocava com os outros participantes eu percebia que isso era um problema para algumas pessoas, mas eu estava tranquila (a maior parte do tempo...). Para um karateca a tarefa de praticar, recomeçar e repetir é no mínimo familiar.

Mas e...

Quanto àquela outra questãozinha de me mexer muito durante a meditação, bem, a partir do dia seguinte a coisa mudaria de figura completamente, impulsionada por um acontecimento que para mim foi marcante: um fracasso total. Neste dia fomos convidados a meditar determinados períodos em adhitthana, que significa firme determinação e é uma das 10 paramis (qualidades a serem desenvolvidas por um meditador). Assumiríamos nestas horas uma firme determinação de não nos mexermos ou mudarmos de posição durante o período inteiro de meditação. Imagine o que era um desafio desses pra leonina aqui :) Acontece que no primeiro período de adhitthana, que foi justamente a primeira vez que fomos apresentados à técnica Vipassana, fiquei o tempo todo sem mudar de posição, num sofrimento danado pois até então eu me mexia muito. Acontece que, depois de passado muito tempo, já com uma dor insuportável, muito formigamento, xingando a tudo e todos, achando que eu havia sido enganada e aquele período tinha na verdade umas 4 horas de duração, finalmente descruzei as pernas. Pois logo em seguida ouvi a voz do Goenka com um cântico, o que significava que faltavam apenas 5 minutos para o fim do período. Primeiro me veio a sensação de fracassar naquela situação específica. me pediram pra não me mexer por um determinado tempo e não consegui? O que era aquele pequeno tempo comparado a uma vida inteira?

Depois, no restante do dia e nos dias seguintes fiquei pensando como aquele acontecimento representava uma situação recorrente na minha vida: eu começo uma coisa, faço um esforço danado, persistência, perseverança e quando chega no final, eu sei que falta pouco ou está quase concluído eu faço uma besteira que condena o projeto como um todo. Como se eu pintasse uma tela impressionista cheia de pequenos detalhes e no final da obra faltasse um pedaço em branco, e em vez de continuar os pontinhos eu resolvesse desenhar uma grande mancha. Na hora eu me convenço de que não vai fazer tanta diferença, que até vai ficar bom e terminarei mais rápido, mas no fundo sei que vai ficar uma m... Eu sei que não vai ficar bom coisa nenhuma, que não é aquele o propósito, que vai estragar o quadro mas eu faço assim mesmo. Provavelmente mais uma situação arquetípica...

Continue a acompanhar minha saga no Dia 05.

Foto: http://farm4.static.flickr.com/3118/3255681848_cd788c620c_o.jpg

2 comentários:

Anônimo disse...

Não vejo problema algum em concluir nossas obras com uma grande mancha.
O problema é rotularmos isso de fracasso!

Essa nossa auto-cobrança é muito forte e muito atravancadora da meditação. É muito contraditório, porque meditamos pra nos sentir bem, no entanto trazemos a lógica do sucesso x fracasso até mesmo pra meditação.

Empresária neuróticA [DeSiGnEr] disse...

Para mim é uma das principais questões. Para algumas coisas acho que ok, aceito que a vaca foi pro brejo, o que às vezes, inclusive, pode ser um "sinal do inconsciente", uma dica de que na verdade, talvez, lá no fundo não seja pra ser aquilo mesmo. Mas para outras coisas acho o fim, simplesmente não consigoooo... :)

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